Diários pretos

Curadoria: Gabriel Martins

Voltando pra casa

Existe um certo cinema brasileiro hoje que brota de um parto doloroso e prazeroso de palavras, imagens, sons e ideias que reafirmam a busca de pessoas pretas por plenitude diante do caos. São, no caso específico desta mostra, filmes em primeira pessoa, diários pretos escritos por câmeras das mais diversas, algumas delas virtuais. O meio não é caro, não traduz porte ou grandes estruturas por trás e os filmes são, em quase todos os casos dessa sessão, registros individuais. Sinto que todas estas pessoas precisavam muito falar sobre suas implosões e criaram estas obras por nenhum outro motivo a não ser uma grande necessidade de desabafar. “Desabafar”, palavra que sugere expansão de energia. Sinto que o direito de falar foi retirado e agora o verbo, o texto, o excesso, se materializa sem importar tanto se as imagens estão em perfeito foco, se a luz é a melhor, se o som foi mixado da forma “correta”. São filmes que refletem a urgência de cada coração e se formalizam imperfeitos como a História do povo brasileiro.

São filmes de retorno, seja um retorno físico a um espaço de saudade, seja um retorno por revisão histórica das nossas memórias. A família, principalmente nas figuras presentes ou ausentes de pai e mãe são uma constante. Escutar o passado para entender o agora e, na contemplação do trajeto, algum lugar possível pra chamar de casa.

“Terremotos e furacões são povos massacrados”, diz a letra de POCO (Quarentena Video feito pelo celular) de Tasha e Tracie. Esta abertura de sessão nos convida a habitar uma imagem de uma mente preta, um corpo preto, seu interior em turbulência. O fogo projetado neste sonho filmado das duas rappers vai se alastrar por toda a subjetividade dos trabalhos em sequência como uma espécie de hino à resistência. O caminho foi difícil até aqui. Da batida das gêmeas seguimos para Círculos, de Lucas Litrento, poema vídeo ensaio rap que estende essa percepção histórica dada na abertura para uma chegada mais íntima, uma projeção da mitologia de Malcom X no sorriso tímido do irmão do diretor. Gosto de pensar uma perspectiva política a partir da ternura e tem algo nesta construção que é positivamente constrangedor e, por isso, muito bonito. Gargaú coloca o realizador personagem Bruno Ribeiro em um percurso cinematográfico de visita a sua avó que é também todo um inventário de possibilidades para o cinema. É um filme sobre estar vivo diante da saudade. Existe ali um carinho especial ao filmar Dona Graça, sua avó, que vai reverberar também na maneira como Letícia Batista olha sua mãe no filme seguinte, 2704 Km. Somos convidados ali a ver uma distância entre duas pessoas diminuir cada vez mais, a cada imagem, tendo como conclusão um afeto pleno, manifestado pelos corpos das personagens em uma cena linda e revigorante de reencontro. E se existe uma sensação de plenitude em um abraço materno, é preciso também visitar a discórdia e o dissabor que a projeção de um amor familiar pode trazer. Chegamos em Vander, o filme mais direto da sessão que guarda em seus curtos dois minutos um infinito de vazio seco que permanece por um longo tempo após o corte final. Na impossibilidade de finais felizes, como a obra anterior nos provocava, encerramos a sessão com a intensa subjetividade de Edna, um auto retrato absolutamente singular e desconcertante que reforça a percepção identificada inicialmente sobre um cinema possível que surja da mais profunda sinceridade. Edna Toledo, cineasta, conversa consigo mesma sobre sua história enquanto nos mostra portais dentro do seu quarto. O que sobra disso é um dos registros mais brilhantes do cinema brasileiro recente que prova a força de podermos contar nossas próprias histórias, da nossa maneira, com todas as nossas faces.

Este apanhado de filmes chegam juntos se fortalecendo como experiência coletiva de individualidades fascinantes que hoje o cinema brasileiro tem no seu mapa. Nos pretos, todas as cores, energias pulsantes que mostram que, mesmo diante de brutais adversidades, a arte segue viva.
Gabriel Martins
curador

POCO (Quarentena Video feito pelo celular)

L
4 min ∙ 2020 ∙ São Paulo / SP
Seu muito pra mim é POCO, pode ficar com o troco. Bati na porta por muito tempo, hoje eu arrombo. (...) Achavam que eu não ia fazer, eu tô fazendo. Jogaram negros e bebês num mar de sangue. E é por isso que existe tsunami, almas não tem fim, elas tão aqui. (...) Se eu passo te incomoda ou não, hein? Por eles guardava a melhor roupa pro caixão.
Direção
Tasha e Tracie
Artistas
Tasha e Tracie
Filmagem e montagem
Tasha e Tracie
Beat
AmandesNoBeat

Círculos

L
2 min ∙ 2020 ∙ Maceió / AL
Estou lendo a biografia de Malcolm X e reparei que meu irmão se parece muito com ele: a história do negro é circular.
Direção
Lucas Litrento
Roteiro e Montagem
Lucas Litrento
Elenco
Lucas Litrento, Becker Litrento, Maria Aparecida dos Santos Litrento e Luiz Demóstenes Litrento
Principais Exibições e Prêmios
Festival Arte como Respiro - Itaú Cultural (2020), Festival Alagoanes (2021); Melhor Contribuição Artística no XI Mostra Sururu de Cinema Alagoano (2020).

Gargaú

L
19 min ∙ 2021 ∙ Rio de Janeiro e São Francisco de Itabapoana / RJ
Bruno entra em um carro com desconhecidos.
Direção
Bruno Ribeiro
Empresa Produtora
Pente Garfo Filmes
Produção Executiva
Laís Diel
Produção
Adler Costa, Bruno Ribeiro e Laís Diel
Roteiro
Bruno Ribeiro
Direção de Fotografia
Bruno Ribeiro, Lucas Fratini e Tuanny Medeiros
Arte e figurino
Adler Costa, Bruno Ribeiro, Dona Graça, Gabriela Montoni, Gustavo Andrade, Lucas Fratini e Tuanny Medeiros
Som Direto
Gustavo Andrade
Montagem
Bruno Ribeiro
Edição de Som e Mixagem
Bernardo Uzeda
Correção de Cor
Vitor Novaes
Principais Exibições e Prêmios
XIII Janela Internacional de Cinema do Recife (2021)

2704 Km

L
11 min ∙ 2019 ∙ Recife / PE
Letícia ao viajar para visitar sua mãe percebe os paralelos de suas histórias.
Montagem, Texto, Voz 2, Direção de Fotografia, Correção de Cor
Letícia Batista
Voz 1
Letícia Barros
Principais Exibições e Prêmios
5° Edição da Mostra Egbé - Mostra de Cinema Negro; CineVisa - CineClube Virtual Suzana Amaral; Mostra Macambira; Negritude Infinita; Semana do Audiovisual Negro; Festival de Cinema Negro Zélia Amador de Deus; Filme convidado na Mostra Afeto da Egbé - Mostra de Cinema Negro ​​​​​​​

Vander

L
2 min ∙ 2019 ∙ Cachoeira / BA
Uma filha tenta encontrar a conexão perdida com seu pai através da única foto que possui.
Direção
Barbara Carmo
Realização
Barbara Carmo
Principais Exibições e Prêmios
13º Encontro de Cinema Negro Zózimo Bulbul, IX CachoeiraDoc, 24ª Mostra de Cinema de Tiradentes, Festival Insubmissões Culturais, 7º FECIBA, 6ª Mostra de Cinema Negro de Sergipe

Edna

L
15 min ∙ 2018 ∙ Nova Iguaçu / RJ
Através de objetos ao redor do seu quarto a cineasta dialoga consigo mesma sobre sua história pessoal para combater a fibromialgia.
Direção
Edna Toledo
Argumento, Câmera, Texto e Performance
Edna Toledo (Filme realizado no curso de Filmes Urgentes do projeto Anti: Residência Fílmica Antifascista, co-dirigido e co-curado por Lorran Dias, Clarissa Ribeiro com programa de educativo da Anarca Filmes)
Principais Exibições e Prêmios
Mostra de Cinema Moventes (2021), Semana Semana (2021), S.U.S.I Interkulturellen Frauenzentrum (Berlin), Sesc, UFRJ, Uerj, Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, TV Coragem
realização
apoio