Pretespaços

Curadoria: Kênia Freitas

PretEspaços: desaparição e descorporificação

“Algumas pessoas querem tocar as coisas, outras coisas querem correr. Se eles te perguntarem, diga-lhes que estávamos voando. O conhecimento da liberdade é a (está na) invenção da fuga, roubar nos confins, na forma, de uma ruptura” (Stefano Harney & Fred Moten)

“E se o filme preto pudesse ser algo diferente de corporificação? E se o filme preto fosse imaterial e sem corpo? E se o filme preto pudesse ser especulativo ou apenas ambivalente?”  É o que Michael B. Gillespie se questiona em “Film blackness” (2016). Essas três perguntas sintetizam o desejo especulativo dessa sessão: a de, seguindo esses seis filmes, pensar um cinema preto caracterizado não pela presença (menos ainda pela representação) dos corpos pretos, mas pela presença de espaços descorporificados e marcados pela desaparição mental e/ou física, imagética e/ou sonora preta.

Como é possível saber que os objetos continuam a existir mesmo quando não os vemos/ouvimos? Em morte, e se no lugar de sair do corpo, a alma encolher até desaparecer dentro dele? Não conseguir se comunicar e ficar presa em seus pensamentos pode ser outra forma dessa desaparição diminutiva? Abrindo a sessão, uma mensagem de áudio em Cool for the summer (Vitória Liz, 2021) confessa essas e outras inquietações (para quem e sobre quem não importa tanto). Enquanto ouvimos a mensagem, somos convidades a deslizarmos pelo acervo de fotos e vídeos de um celular: jovens se divertindo, selfies, memes e paisagens se sucedem. A voz não pára sobre as imagens e nem elas sobre a voz: tudo desliza sem a certeza do que permanecerá no próximo frame ou na próxima frase.

Seguimos a sessão hipnotizades pelos riscos azuis, cinzas e vermelhos sobre uma tela preta. Eles viram ondas, rios, correntezas, formas estranhas, multi e monocromáticas que se emaranham, piscam como sirenes de carros da polícia, e explodem - e viram novos riscos azuis, cinzas e vermelhos. Talvez isso seja a materialização mais possível da desaparição de um jovem preto. Ou talvez seja o silêncio e os olhos arregalados de sua mãe que demoradamente encara a câmera. Banzo (Rafael Luan, 2021) cria sua possibilidade de fazer ver o assassinato na montagem dessas duas sequências. O filme nos convida a sentir a espacialidade imaterial do não-mais-ser refletida no olhar que não pode parar de ver, ainda que nada encontre.

É essa espacialidade que contorna sem delimitar essa sessão de filmes - e que denominamos PretEspaços. Algo entre: “Espaço sideral & literal + (não) Espaço que está (sempre-já) em-todo-lugar” (Freitas, 2020). Uma espacialidade fílmica que se projeta entre a imaterialidade, a abstração e a desintegração (corporal e mental). Uma espacialidade que pode ser equacionada - em um diálogo com Denise Ferreira da Silva - como no filme Blackness = Time ÷ Media = ∞ (Márcio Cruz, 2021) - por onde a sessão continua o seu processo de desintegração:

vida = tempo = movimento
Vitalidade da mídia = Vitalidade Preta
(Vitalidade) da mídia = Pretitude
Pretitude = Tempo ÷ Mídia = ∞

Nessas equações a desintegração da pretitude não pode ser pensada fora de uma desintegração ecológica do mundo. O glitch que desfaz a performance preta (no cinema e nas redes sociais) é o mesmo que desfaz os espaços colapsados pelo neocolonialismo e pelo neoliberalismo. Ambos se refazem em formas geométricas da computação visual e espaços cósmicos e celestes. O infinito da pretitude está no entendimento dessa sua implicação utópica. Como nos lembra Jayna Brown (2021), a criação de utopias pretas acontece fora da ideia de humanidade (na qual a pretitude nunca foi incluída). Mais do que isso, essa utopia acontece na descentralização do humano como referência, na passagem da ideia de “pessoa” para (uma) “entidade” (entre outras), no apagamento dos limites do individualismo, no fato da carne preta misturar-se com outras carnes e com outros elementos (orgânicos e inorgânicos).

Comunhão espacial partilhada no afundamento do solo e da vida de três bairros de Maceió, em Subsidência (Beatriz Vilela e Marcus José, 2020), o próximo filme da sessão. Na implicação inextricável das entidades orgânicas e inorgânicas, a extração do sal-gema pelo processo predatório das grandes empresas de mineração é também a extração de habitantes de suas casas, dos seus espaços. No filme, esse processo é ao mesmo tempo também a desintegração psíquica da que se percebe solitária em uma ruína urbana distópica. Da que se percebe em uma desaparição mental, física e também do território - de seu espírito entrando e diminuindo para dentro de si (e da terra).

O corpo é “a primeira terra devastada”, como nos lembra José Juliano Gadelha (2019). A ausência da presença material do corpo em alguns filmes pode ser um gesto estratégico de recusa aos processos dessa devastação. Nessa ausência forjam-se alianças e comunhões de outras dimensões, como a comunhão cosmológica que marca o pôr-do-sol na paisagem da Zona Leste de São Paulo de 00:17:35, ZL (Vinícius Silva, 2020), o penúltimo filme da sessão. Os sons distorcidos (que parecem de explosões e quedas) não nos fazem esquecer que se trata de 2020, um ano de colapsos. Enquanto as imagens avermelhadas, desaceleradas e quase imperceptíveis da vizinhança em movimento e do sol escondendo-se no horizonte, situam o filme em um tempo geológico e, portanto, infinito. E, portanto, equacionalmente preto.

Encerramos a sessão com o retorno da paisagem, em Incêndio (Grenda Costa, 2020). O horizonte urbano e caótico é o de Fortaleza. Retorna também a mensagem de áudio em tom confessional para uma interlocutora ausente - para quem e sobre quem importa ainda menos nessa espacialidade corporificada somente por uma voz. Alguém que se foi e é lembrança de festas antigas e fotos que precisam ser revistas e reorganizadas para persistirem existindo como memória - se ninguém olhá-las, elas poderiam enfim desaparecer? E a partida para além da paisagem esfumada pode ser, além de saudade, também fuga e liberdade?

Junto com esses filmes, propomos um voo livre pelas múltiplas formas do cinema preto forjar-se fora da centralidade da representação (e até da presença). Com suas imagens e sons, convidamos para a percepção de PretEspaços: descorpoficados e de desaparição (infinitos e de comunhão cosmológica).
Referências
BROWN, Jayna. Black utopias: speculative life and the music of other worlds.Durham and London: Duke University Press, 2021.
FREITAS, Kênia. “PretEspaço: as cidades não imaginadas”. In: Multiplot!. Publicado em 17 de novembro de 2020. Disponível em: http://multiplotcinema.com.br/2020/11/pretespaco-as-cidades-nao-imaginadas/
GADELHA, José Juliano. O Sensível Negro: rotas de fuga para performances. Revista Estudos da Presença, Porto Alegre, v. 9, n. 4, p. 01 - 24, 2019.
GILLESPIE, Michael Boyce. Film blackness: American cinema and the idea of black film. Durham: Duke University Press, 2016.
MOTEN, Fred; HARNEY, Stefano. Pretitude e governança. Arte & Ensaios, n. 37, março de 2019.
Kênia Freitas
curadora

Cool for the summer

L
6 min ∙ 2021 ∙ Recife / PE e São Paulo / SP
Passamos anos inteiros segurando o fôlego na espera pelo verão. Nesse aspecto, dois-mil-e-vinte foi apenas mais do mesmo... que nem a música da Demi.
Direção
Vitória Liz
Montagem
Rafael Nascimento
Legendagem
Giulio Bruno
Identidade Visual
Brenda Costa
Principais Exibições e Prêmios
Mostra Macambira (2021), Mostra Absurda (2021), Mostra Negritude Infinita (2021)

Banzo

L
14 min ∙ 2020 ∙ Fortaleza / CE
Joana vive uma vida pacata na periferia de Fortaleza até que recebe a notícia do assassinato do filho pela polícia militar. Ela então reinventa seu cotidiano na grande cidade entre a solidão e a saudade.
Direção
Rafael Luan
Elenco
Daniele Teotônio, Lucas Limeira e Monique Carneiro
Produção
Lure Furna
Roteiro
Rafael Luan
Ass. de Direção
Esaú Pereira
Preparação de Elenco
Jô Costa
Ass. de Produção
Nicole Castro
Platô
Djeyne Rudolf
Direção de Fotografia
Adri Duarte
Ass. de Fotografia
Luan Botêlho
Som Direto
Lucas Negreiro
Direção de Arte
Vitória Maria Ribeiro
Figurino
Vitória Pereira
Maquiagem
Jô Costa
Correção de Cor
Gabi Trindade
Edição de Som
Mike Dutra
Trilha Sonora
Briar e Mateus Fazeno Rock
Animação
Gio Gios
Arte Gráfica
Lux Farr
Principais Exibições e Prêmios
Festival de Cultural Online Kinolab Tela Digital 2021

Blackness = Time ÷ Media = ∞

L
5 min ∙ 2021 ∙ Paris / França
Em algumas cosmogonias africanas e afro-diaspóricas, o acesso ao passado ancestral funciona como prática de ajuste quântico-espiritual. "Blackness = Time ÷ Media = ∞"  (Negridade = Tempo ÷  Mídia = ∞)  opera como uma máquina do tempo, que ativa o arquivo em múltiplos níveis, remediando performance, espiritualidade, cinema, novas mídias, música e meio ambiente. Ao abrir uma fissura temporal, a modernidade vem ao colapso e a negridade, enfim, se manifesta. Um filme-ensaio de Márcio Cruz.
Direção
Márcio Cruz
Elenco
Eliezer Gomez,  Ruth de Souza, Mbissine Thérèse Diop, Milton Gonçalves, Cartola, Xênia França, Diandra Forrest, Antônio Pompeo, Luciana Souza, Tunde Adebimpe, Kudzani Moswela, Antônio Pitanga, Mbissine Thérèse Diop, Cícera da Cruz, Anízia Maria de Jesus, Ramana Borba, Alex Coutinho e Kéîsha Alphonse entre outros
Roteiro, Direção de Fotografia, Animação, Cor, Sound Design
Márcio Cruz
Edição de Som, Mixagem e Masterização
Rafael Paiola
Música
George Lewis,  Marina Rosenfeld, Melvin Santhana e Thiago Sonho
Abertura e Créditos Finais
Lucas Tomaz Neves
Principais Exibições e Prêmios
Birkbeck Arts Weeks – Londres / UK (2021)

Subsidência

L
8 min ∙ 2020 ∙ Maceió / AL
De modo imagético-simbólico, o filme mostra os efeitos destrutivos da subsidência em alguns bairros de Maceió e chama a atenção para a dor de milhares de famílias, vítimas deste afundamento do solo causado pela exploração predatória do sal-gema na área lagunar de Maceió (AL).
Direção
Beatriz Vilela e Marcus José
Empresa Produtora
Beatrix Filmes
Produção
Rose Monteiro
Direção de Fotografia
Renata Baracho e João Dias
Captação de Som
Fábio Cassiano
Still
Leonardo Amaral
Montagem
Beatriz Vilela e Renata Baracho
Finalização
Pedro Krull
Principais Exibições e Prêmios
Mostra Egbe de Cinema Negro, Festival Alagoanes; Prêmio Olhar Crítico na X Mostra Sururu de Cinema Alagoano.

00:17:35, ZL

L
5 min ∙ 2020 ∙ São Paulo / SP
Da Zona Leste da capital de São Paulo, uma viagem da janela.
Direção
Vinícius Silva
Realização
Vinícius Silva
Principais Exibições e Prêmios
Instituto Moreira Salles

Incêndio

L
7 min ∙ 2020 ∙ Fortaleza / CE
...em tempo te escrevo uma resposta.
Direção
Grenda Costa
Empresa Produtora
Tempo Bom Filmes
Realização
Grenda Costa
Tradução
Camilla Osório
Design e Legendagem
Saulo Monteiro
Principais Exibições e Prêmios
II Mostra Quilombo (2020)
realização
apoio